VIDA ALHEIA

16 de Abril de 2015 20h04

Ora, não sejamos falsos! Gostamos de saber da vida dos outros. Uns mais, outros menos. Alguns até espalham, aumentam, e vira maledicência. Uma confusão tamanha que dá processo: calúnia-injúria-difamação-crime e cadáver no IML.

Twitter: @ItapebiAcontece


Sobre a vida alheia os sábios silenciam, não julgam, não condenam. Apenas entendem como funciona a nossa humana(idade). Os cautelosos  dizem “não sei, não vi, estava olhando pro outro lado!” De qualquer forma é conveniente não ter visto porque nunca se sabe aonde vai parar o que se viu.
Em verdade, saber da vida dos outros faz parte do jogo de viver. Alto lá! Está me chamando de abelhudo? Confesso. Eu gosto, mas não fico atrás da vida dos outros, olhando pelos buracos de fechaduras. Às vezes, no entanto, os outros se expõem de tal forma que é inevitável tomar conhecimento do que se passa em suas casas na calada da noite. Ou na noite que deveria estar calada às duas da madrugada, impedindo o sono dos justos.
Lá pelas nove da noite ouço o som altíssimo da TV: “hum... eles gostam deste canal, aliás, um péssimo gosto”. Deito cedo, gosto de ler na cama. Será que eles não entendem que preciso de silêncio? Começaram uma discussão. É um casal. Alguém chutou a cadeira e pelo baque deve ter sido ele. “Cavalo!” – ela cisca do outro aposento. Imagino onde cada um está porque a arquitetura das casas é igual. Outro barulho atravessa a parede e entra na página do livro que estou lendo. Uma tampa de panela cai no chão. Ela está na cozinha.
Mesmo havendo uma distância considerável entre nossas moradias, identifico tudinho. Agora alguém bate suco de polpa de frutas. Entendo disso. Latas de cerveja caem no chão e, pelo baque da porta da geladeira, o cara deve estar virado no serereco. Amanhã cedo comprarei um protetor auricular igual ao dos caras do aeroporto. Decido.
Um minuto e meio para a meia-noite. O livro recusa meus olhos ou o contrário, já nem sei mais. Adormeço. Meu Deus, o que é isso? Como são barulhentos! Gemidos, urros, relinchos. Como ela grita!  Conheço esse tipo de gemido. Mas assim também já é demais, É sexo selvagem, só pode. Lembro do “cavalo”. Putz, eu quero dormir... Mais sons característicos invadem o meu espaço e ninguém é inocente pra não saber do que estou falando. Farei queixa ao síndico.
Alto lá! Não estou com inveja, não. Só quero dormir. Água de chuveiro.  Vão silenciar. Oh, não! Isso é barulho de secador e ainda por cima a desgraçada tem cabelos compridos.
Me vingarei assim que o dia amanhecer. Não entrei na vida deles, eles é que entraram na minha. Alguns se vingam, às escondidas, na frieza das madrugadas. Eu não. Quando o sol arder, pela manhã, muita gente lerá sobre a vida dos meus vizinhos. Dizem que a vingança é um prato que se come frio, mas a minha vou comer fervendo. Podes crer, amizade!
 
Neuzamaria Kerner, baiana de Salvador e vive em Vitória (ES), professora e escritora. Tem publicados os livros: Fragmentos de Cristal, Eu Bebi a Lua, A Presença do Mar na Prosa Grapiúna, O Livro-Arbítrio das Evas – Dentro e Fora do Jardim e publicações em revistas literárias.
 
 
                                                  

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