No interior da Bahia brigadas voluntárias que vivem de doações ajudam a salvar vidas

Solidariedade
14 de Outubro de 2024 09h10

Os voluntários que integram brigadas de emergência são responsáveis por salvar milhares de vidas em cidades baianas

Twitter: @arnaldofenix

Imagens: Reprodução WEB

Eles não recebem um tostão para fazer o que fazem e utilizam seus contraturnos de trabalho para ficarem a postos, de plantão e atentos a qualquer chamado de socorro. Os chefes de alguns já estão cientes de que, a qualquer momento, eles deixarão suas funções com a missão de ajudar o próximo.

Os voluntários que integram brigadas de emergência são responsáveis por salvar milhares de vidas em cidades baianas que, muitas vezes, carecem de mão de obra profissional preparada e de estruturas para atender de prontidão casos como acidentes de trânsito, emergências médicas, resgates de pessoas e animais e incêndios.

Algumas delas chegam a receber incentivos das prefeituras locais para custos operacionais e contam com a solidariedade de seus conterrâneos, nas conhecidas “vaquinhas online” e rifas. Mas, quando o cofre esvazia, quase sempre é necessário tirar do próprio bolso para pagar despesas como gasolina para os automóveis, alimentação para a equipe e compra de equipamentos.

Não se sabe ao certo quantas brigadas voluntárias de emergência há na Bahia, mas o fato é que elas têm atuado nas principais ocorrências do estado, como é o caso da Brigada Anjos Jacuipenses, de Riachão do Jacuípe, no nordeste baiano, que, em janeiro deste ano, ajudou a resgatar sete sobreviventes de uma colisão envolvendo um micro-ônibus e um caminhão truck, que matou 24 pessoas no km 381 da BR-324.

Águia Resgate

Em 2008, Gildo Carneiro estava no comando de uma moto. Naquela época, ele morava em Salvador, mas estava de férias em sua cidade natal, Conceição do Coité, também na região nordeste do estado. O jovem retornava para a casa dos pais, voltando de uma festa em uma cidade vizinha, quando sofreu um acidente de trânsito.

O socorro demorou a chegar, e a equipe de profissionais enviada para encaminhá-lo até um hospital mais próximo não era qualificada o suficiente para atender casos de urgência e emergência. Gildo, que sofreu uma lesão na coluna torácica, foi socorrido sem os devidos cuidados e colocado em uma maca de qualquer jeito, o que contribuiu para que ele ficasse com sequelas irreversíveis, como a perda de movimento das duas pernas.

O jovem foi levado para o Hospital Geral do Estado (HGE), em Salvador, onde permaneceu durante um ano em um leito de recuperação. Durante esse período, no vai e vem de acompanhantes e pacientes que muitas vezes não resistiam, uma evangélica chegou à beira de sua maca e fez uma profecia: Gildo ficaria bem e, além disso, ajudaria a salvar vidas.

O rapaz se recuperou e voltou a dirigir automóveis após trocar a CNH convencional pela especial, destinada às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. De volta a Conceição do Coité, em 2019, ele participava de um culto em uma igreja evangélica quando o pastor fez uma pregação que tocou sua alma.

“O pastor pregou dizendo que quem tivesse o desejo de salvar vidas deveria seguir esse caminho, e que daria certo. A partir dessa pregação, resolvi criar a Brigada Águia Resgate. O nome ‘Águia’ veio da pregação, pois o pastor falava da águia que enxerga a quilômetros de distância, e ‘Resgate’ veio do nome da igreja, que era ‘Missão e Resgate’”, conta.

Gildo, que nunca tinha esquecido da profecia da evangélica no leito do HGE, agora estava mais que convencido de que sua missão era ajudar a salvar vidas, e não sossegou até colocar isso em prática. A Águia Resgate começou como um projeto muito pequeno e surgiu a partir da venda de um carro particular.

“Vendi o carro e comprei uma ambulância. Adaptei o veículo e comecei a reunir amigos que tinham formação como bombeiros civis, socorristas e especialistas em primeiros socorros. Assim, montamos a brigada aos poucos, começando com cinco voluntários e uma ambulância. A população abraçou o projeto, conseguimos comprar outra ambulância, e mais pessoas foram entrando na brigada”, lembra.

No começo, faltava quase tudo, mas o desejo de ajudar o próximo era grande. A garagem da casa de Gildo tornou-se base para a brigada, e sua esposa ficou responsável por dar plantão todos os dias, atenta aos chamados de socorro que eventualmente surgissem.

As ocorrências foram chegando, vidas foram sendo salvas, e a população de Conceição do Coité passou a entender a importância da brigada voluntária para a cidade. Os munícipes começaram a fazer doações, e o projeto foi tomando forma.

Para fazer parte da brigada e trabalhar no socorro às vítimas, é necessário estar ligado à área da saúde ou a qualquer outra que inclua formação em primeiros socorros. Quando os voluntários passam a integrar o Águia Resgate, participam de um treinamento de três meses para aprimorar ainda mais suas habilidades.

O que começou com cinco pessoas, na garagem da casa de Gildo, hoje conta com 27 voluntários, que se revezam em plantões em um espaço bem maior, usado como base do grupo. A prefeitura mantém um convênio que repassa R$ 4 mil mensais, investidos em combustível para quatro ambulâncias e material hospitalar.

Além disso, uma pequena porcentagem vem de doações da população. Esse valor é destinado à alimentação dos voluntários ou à compra de peças para as ambulâncias, quando os veículos apresentam algum problema.

De acordo com Gildo, a maioria dos atendimentos envolve acidentes automobilísticos com motocicletas, que representam cerca de 90% das ocorrências. O restante inclui acidentes de carro, quedas de altura e atendimentos clínicos.

Antes da atuação da brigada voluntária, o atendimento médico podia demorar até cerca de 40 minutos para chegar ao local da ocorrência. Hoje, a cidade já conta com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), e as duas equipes trabalham em conjunto. Os casos são atendidos com maior celeridade.

Abomproci

Em 2015, Manoel Hito estava na companhia de sua família, radiante, pois era o aniversário de 100 anos de sua mãe. Muitos de seus familiares vieram de cidades vizinhas e até de outros estados para participar da festa, que aconteceu na cidade de Ipirá, no centro-norte do estado.

Parte de seus parentes se despediu mais cedo e retornou para Feira de Santana, distante menos de 100 km de onde acontecia a confraternização da centenária. Era para ser uma viagem tranquila, mas um acidente envolvendo o carro deles transformou aquele domingo comemorativo em uma tragédia.

“Ainda eram 18h quando recebemos a notícia do acidente. Minha irmã, o esposo dela, as duas filhas e o marido de uma delas, que dirigia o carro, estavam no acidente. Todos se machucaram. Meu cunhado faleceu, e minha irmã teve fraturas”, conta.

O atendimento prestado às vítimas não foi o adequado: os acidentados não foram imobilizados, e a condução até a ambulância foi feita de forma completamente amadora, sem os devidos cuidados. O saldo disso foram graves sequelas nos sobreviventes.

“O atendimento foi muito inadequado. Eles foram retirados do carro de forma brusca, causando mais lesões. Meu cunhado morreu, e minha sobrinha também ficou com sequelas”, completa Manoel Hito.

Naquela época, ele já trabalhava como técnico de segurança do trabalho e tinha um curso de socorrista. Percebeu, com a tragédia familiar, que era preciso fazer algo. Foi assim que resolveu fundar a Associação dos Bombeiros Profissionais Civis e Voluntários de Ipirá (Abomproci). No começo, cada voluntário tirava do próprio bolso para pagar o aluguel da sede, bem como as contas de água e luz.

Em 2016, um incêndio consumiu o mercado municipal de Ipirá, o principal equipamento cultural da cidade. As chamas se alastraram por todo o espaço, e parte dos restaurantes e lojas de produtos artesanais virou cinzas. A equipe do Corpo de Bombeiros mais próxima estava na vizinha Itaberaba, distante cerca de 78 km.

A recém-criada brigada voluntária combateu o incêndio antes da chegada dos bombeiros militares, que apenas fizeram o rescaldo. Após esse episódio, a gestão municipal e a população compreenderam a importância do grupo.

Hoje, a Abomproci atua em atendimentos de socorrismo, combate a incêndios florestais e urbanos, captura de animais peçonhentos e abelhas. Os membros são bombeiros civis, enfermeiros, técnicos de enfermagem e socorristas. Somente em 2024, de 1º de janeiro até agora, já foram atendidas 785 ocorrências, sendo 320 acidentes, dos quais 340 envolveram motos, principalmente com jovens.

“O que nos motiva é a satisfação de salvar vidas. Não há pagamento melhor do que ser reconhecido por alguém cuja vida você ajudou a salvar. Mesmo após um dia cansativo de trabalho, sabemos que o estado não alcança nossa comunidade e que, sem nossa atuação, muitos poderiam ter sequelas ou perder a vida, como aconteceu com meus familiares”, comenta Manoel Hito.

Atualmente, o custo mensal da operação da brigada gira em torno de R$ 6 a R$ 7 mil. A prefeitura da cidade arca com combustível e alimentação, mas os gastos com equipamentos e uniformes, por exemplo, são cobertos por rifas e doações.

Anjos Jacuipenses

Os Anjos Jacuipenses foram fundados em 14 de agosto de 2017. Naquela época, de acordo com o fundador Lucival Souza, havia muitos acidentes na BR-324, nas proximidades de Riachão do Jacuípe, no nordeste baiano. O socorro mais próximo vinha da cidade de Feira de Santana, distante cerca de 80 km. Dependendo da situação, os socorristas demoravam até duas horas para chegar ao local da ocorrência.

“Víamos muitas vidas sendo perdidas, muitas pessoas presas às ferragens em acidentes. A Polícia Militar e a Polícia Rodoviária Federal chegavam, mas já não podiam fazer muita coisa. O intuito de fundar a brigada foi somar esforços na BR-324. Como nossa cidade não tinha Samu, abraçamos esse projeto”, conta Lucival.

Durante a pandemia, eles foram os primeiros a atender o primeiro caso suspeito de Covid-19 e o primeiro óbito em decorrência do vírus. As três primeiras ambulâncias que conseguiram para atender as ocorrências vieram de doações.

Lucival conta que algumas ocorrências que ele atendeu o marcaram profundamente. A primeira foi um acidente de trânsito envolvendo um caminhão e uma motocicleta, em setembro do ano passado, na BR-324, que deixou três vítimas fatais.

Duas das vítimas eram irmãos e vizinhos; a outra era um colega com quem ele se formou em técnico em agroecologia. A segunda foi um acidente envolvendo seu próprio irmão, que bateu a motocicleta em um cavalo.

“São muitas situações que nos marcam no nosso dia a dia. A cidade é pequena, com pouco mais de 30 mil habitantes, então a gente acaba conhecendo todo mundo. Sofremos junto com as famílias”, comenta Lucival.

Hoje, 23 pessoas trabalham na brigada como voluntários. Os atendimentos ocorrem em parceria com o Samu. A ocorrência que mais demanda o grupo é acidente de trânsito, como ocorre com outras brigadas.

Os Anjos Jacuipenses têm um gasto mensal de cerca de R$ 2,5 mil. Da ajuda da população, são arrecadados todos os meses de R$ 700 a R$ 1 mil. Já a prefeitura doa 40 litros de gasolina. “Está dando para ir, mas pedimos a Deus que os moradores daqui continue nos ajudando”, diz Lucival.

Por: Correio 24horas

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